Entre o início de janeiro e o fim de março de 2024, a Amazônia teve o maior número de queimadas registradas nos primeiros três meses do ano desde 2016. Foram 7.861 focos de fogo no período, um aumento de quase 180% em comparação ao mesmo período em 2023. A situação é especialmente crítica em Roraima, que acumulou 4.090 focos nesses três meses. Esse valor é o maior já registrado no primeiro trimestre em Roraima nas últimas duas décadas e representa um aumento de 310% em comparação ao mesmo período em 2023 (997 focos).
Os incêndios descontrolados em Roraima tiveram impactos no abastecimento de água e comida, na saúde humana e na economia local. As consequências foram sentidas nas cidades e nas comunidades indígenas, produzindo uma situação de emergência humanitária. Organizações indigenistas locais estimam que pelo menos 70 mil pessoas foram impactadas pela falta de acesso à água potável.
Em toda a série histórica do Programa Queimadas do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), iniciada em 1999, apenas em 2001 Roraima teve uma quantidade de queimadas semelhantes à do primeiro trimestre de 2024, ultrapassando a marca dos 4 mil focos.
“O recorde de queimadas em Roraima é mais um episódio na sequência de eventos extremos observados na Amazônia, desde setembro do ano passado. Em um ano de El Nino e aquecimento do Atlântico, no qual tivemos a pior seca da Amazônia em 120 anos, era esperado que a temporada de seca em Roraima fosse bastante intensa. Nessas condições, qualquer foco de queimada pode ganhar proporções maiores e sair do controle”, afirma Mariana Napolitano, diretora de estratégia do WWF-Brasil.
Em 2024, o número de queimadas em Roraima disparou nos meses de fevereiro e março, quando foram registrados 2.057 e 1.429 focos, respectivamente. Nos 12 meses anteriores, a média de queimadas havia sido de 245 focos por mês.
A situação também é preocupante em vários outros estados onde foi notado um aumento significativo dos focos em relação ao ano passado. Ao nível do bioma, onde foram registrados 2.654 focos em março, um aumento de mais 160% em comparação ao mesmo mês em 2023 e de 105% em relação à média dos 10 anos anteriores (2014 a 2023). Nos últimos 10 anos, a marca de 2 mil focos no bioma só foi superada pelos 2.433 focos registrados em março de 2019. Naquele ano, a Amazônia registrou seu recorde de queimadas em uma década, com 3.383 focos, sendo 72% deles em Roraima.
Apesar do aumento das queimadas, os alertas de desmatamento vêm caindo há meses na Amazônia Legal e tiveram redução de cerca de 40% no primeiro trimestre de 2024, com perda de 507,1 km² de vegetação nativa, na comparação com 2023, quando a área sob alerta foi de 844,6 km².Os dados são do Sistema Deter, do INPE.
Em Roraima, por outro lado, o desmatamento aumentou no primeiro trimestre, totalizando 115,1 km². O valor é quase 25% maior que o registrado no mesmo período do ano passado (92,2 km²) e praticamente iguala os 115,7 km² registrados no primeiro trimestre de 2019, recorde histórico de desmatamento em Roraima para o período. O pico da devastação no primeiro trimestre em Roraima aconteceu em fevereiro, quando foram desmatados 52 km², o maior número da série histórica do Deter para o mês. Em janeiro e março os índices foram de 32 km² e 31 km², respectivamente.
A estação seca ocorre entre janeiro e março em Roraima. O fato de termos um aumento significativo do desmatamento e das queimadas neste período é preocupante, pois pode indicar um aumento da destruição esse ano no estado.
De acordo com Edinho Batista, coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), além da destruição ambiental causada pelo fogo, cerca de 70 mil indígenas estão sem acesso à água potável no estado, porque os rios, igarapés e poços artesianos estão secos em suas comunidades.
“No início de abril, tivemos uma melhora da situação porque a chuva está voltando aos poucos e isso ajudou a controlar as queimadas. Mas as consequências da seca ainda persistem, porque o fogo destruiu muitas roças, deixando muita gente em situação de escassez alimentar, e a redução do nível dos igarapés, lagos e poços ainda não se normalizou”, contou Batista.
Segundo ele, o nível do Rio Branco, principal fonte de abastecimento de água potável de Roraima, baixou dramaticamente a partir de fevereiro. “Em inúmeras comunidades indígenas temos relatos de pessoas que estão consumindo água sem tratamento, cheia de lama, com grande risco para a saúde”, afirmou.
Em Boa Vista, capital do estado, cerca de 90% da população depende do Rio Branco para obter água potável, segundo ele. “Quando o Rio Branco baixou, o nível da água potável nas caixas d’água também foi reduzido. A situação é de extrema gravidade”.
Rio seco e fumaça
Conforme monitoramento da Companhia de Águas e Esgotos de Roraima (CAER), o Rio Branco começou fevereiro com o nível de 20 centímetros e, no dia 15, atingiu o nível negativo pela primeira vez no ano. No início de março o nível estava em 15 centímetros negativos. Segundo o último Boletim Hidrológico da Bacia do Amazonas, divulgado pelo Serviço Geológico do Brasil, no dia 5 de abril o nível ainda era de 13 centímetros negativos.
A produção de água potável nos poços artesianos do estado foi reduzida em 20%, o que, segundo a CAER, acaba ocasionando baixa pressão na rede de distribuição de água dos bairros mais afastados.
Por conta das queimadas, no início de abril, Boa Vista apareceu no Índice Mundial de Qualidade do Ar como a 15ª cidade com o ar mais contaminado e perigoso do mundo para se respirar. A cidade passou a maior parte do mês de março encoberta por uma fumaça densa.
O Corpo de Bombeiros de Roraima aponta a prática local de atear fogo para “limpar” a terra como um dos fatores que agravam a situação, uma vez que o fogo pode sair de controle - e atribui a origem do fogo exclusivamente a ações humanas.
“Houve relatos de um aumento significativo em internações por conta de problemas respiratórios”, declarou Batista. De acordo com ele, as queimadas e escassez de água atingem diversas regiões do estado, como as terras indígenas Raposa Serra do Sol, Serra da Lua e São Marcos. “Na Terra Indígena Yanomami, há relatos de crianças e idosos prejudicados pela fumaça, além de casas e roças destruídas por incêndios e falta de água potável”, afirmou Batista.
Força-tarefa para ajuda humanitária
Segundo Batista, o CIR está organizando uma força-tarefa, junto a parceiros como o WWF-Brasil, para realizar uma campanha de arrecadação de recursos financeiros a fim de atender as famílias impactadas pela seca com ajuda humanitária.
“Temos 63 brigadistas comunitários treinados que atuaram intensamente no combate ao fogo. Com a explosão das queimadas, foi preciso que a força-tarefa incluísse também as comunidades indígenas, que foram para o campo de combate, além de estudantes e professores, já que as aulas foram paralisadas por causa do fogo”, contou.
No início de abril, representantes de pastorais, articulações e organizações da Diocese de Roraima, e de movimentos e organizações da sociedade civil em Roraima lançaram uma nota pública afirmando que “a situação nos territórios indígenas é gritante e desesperadora”.
“Muitas comunidades tiveram suas roças e casas, além de pastos queimados. Associado a forte estiagem, com igarapés, rios e poços secando, o quadro só não é mais grave, pois os próprios indígenas, a partir do Conselho Indígena de Roraima, têm suas brigadas indígenas, que estão atuando, de forma dedicada, nos vários territórios para controlar o fogo”, diz a nota.
Cestas básicas e apoio a brigadas
De acordo com Osvaldo Barassi Gajardo, especialista em Conservação do WWF-Brasil, a organização está preparando uma ação emergencial em Roraima, depois de ter recebido um pedido de apoio do CIR e da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
“O CIR e a Coiab são nossos parceiros em Roraima e solicitaram apoio ao nosso programa de emergência. Vamos concentrando os esforços em dois componentes: ajuda humanitária e fortalecimento de brigadas de combate ao fogo”, disse Gajardo.
Segundo Gajardo, depois de uma reunião com os representantes do CIR, ficou constatado que há muitas famílias desabastecidas, sem água e comida, que sofreram graves impactos em suas roças.
“Vamos dar um apoio para a essas famílias para a aquisição de cestas básicas. Para fortalecer as brigadas do CIR, vamos fornecer ferramentas e equipamentos, em especial os proteção individual, como capacetes, coturnos, gandolas, calças, óculos e outros itens de segurança dos brigadistas. Estamos também avaliando a compra de algumas moto-bombas para apoiar as comunidades que estão sem água.”
Fonte: WWF-Brasil